Entre a Rachadura e as Estrelas
- 23 de abr.
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Atualizado: 5 de jul.

A Terra estava exausta. O clima instável colapsava; as florestas ardiam em fogo; os mares, envenenados; as últimas fontes de água potável tornavam-se disputas locais, e o solo, cada vez mais infértil. Marte acolhia os exilados ricos e abrigava colônias fortificadas para os que ainda podiam pagar. A Lua concentrava centros diplomáticos. Mas a esperança apontava para longe: Lysereth, uma estrela dourada recém-descoberta em uma galáxia vizinha, com dois planetas capazes de abrigar vida. A Coligação de Erídia, um povo dissidente que vivia a bordo de uma nave-planeta colossal, orbitava o sistema antes da chegada da Federação Terrana. Reivindicaram Lysereth por ocupação e permanência — mas a Federação já iniciava a instalação de suas próprias colônias nos planetas promissores e, desesperada, respondeu com armas. A guerra começou.
Oton Bels lutou em Atlas-8, uma lua rica em minérios que orbitava um dos planetas de Lysereth — e ali perdeu sua esposa num ataque orbital. Meses depois, enviado para a linha de frente, sua nave foi atingida durante o salto. Quando despertou, ele estava estirado no piso irregular de uma sala de contenção. Os alarmes estavam mudos, e não havia sinal de seus colegas de combate — apenas os nomes deles piscando em vermelho no visor: “Perdidos em ação.” Lysereth brilhava pela janela de observação, imóvel e distante. Restava apenas sua luz, ainda visível no horizonte escuro. E ele não tinha mais nada — só ela. Não sabia se a guerra havia sido vencida. Mas sabia que, entre todos, era ele quem restara.
Oton caminhava devagar, passos abafados sobre o metal sujo e danificado. As luzes de emergência piscavam em vermelho, lançando sombras breves nas paredes descascadas. Nada funcionava. Nem o sistema de navegação, nem os painéis de comando, nem o som da própria respiração — abafada pelo capacete trincado. Havia algo de fantasmagórico em andar ali sozinho, o tempo parecia partido, e ele caminhava por um fragmento morto do mundo. Por instinto, procurou uma sala de comunicação, mas encontrou apenas telas quebradas e um fone pendendo do teto, chiando um som seco — um ruído oco, feito de ausência. Sentou-se no chão, encostado à parede curva da fuselagem. E foi então que ouviu. Uma voz eletrônica saindo de algum ponto do capacete:
— Tripulante Bels… você está bem? Você me escuta?
— Ah, maravilha. Estou conversando com o capacete.
— Sistema de comunicação de bordo ativado. Detecção de estresse físico e emocional elevado.
— Isso é o que acontece quando todos morrem, menos você.
— Deseja que eu ative um protocolo de apoio psicológico?
Ele fechou os olhos e respirou fundo, tentando entender se a voz era real ou apenas um ruído esgarçado na própria mente. A dor nas costas era concreta. A frieza da parede, também. Tudo o mais parecia distante, desfocado. A resposta escapou-lhe num tom seco, quase automático, sem nenhuma intenção de iniciar conversa. Mas a voz permaneceu ali, neutra e clara, pronunciando palavras com uma cadência suave demais para parecer programada. Ele não comentou. Ainda. Dados vitais começaram a piscar no visor, e sua pulsação, aos poucos, se estabilizava. Ergueu-se com esforço, os músculos tensos, e voltou ao corredor. A presença não se afastou. E foi quando ele ouviu:
— Se estiver pronto para falar… posso ouvir — disse a voz com suavidade.
— Não devia dizer isso com essa voz — murmurou Oton, e o tom soou mais ferido do que pretendia.
Depois que falou, ele se arrependeu do tom. Havia algo em sua própria voz que soava como súplica disfarçada. A caminhada recomeçou, lenta, e o corredor parecia mais estreito — o peso da lembrança parecia empurrar as paredes contra ele. À frente, uma escotilha pendia torta, e o som do metal era cortante como vento em estrutura vazia. A ausência da voz fazia mais barulho do que sua presença. Ele limpou o visor com a manga do traje. Aquilo era um sistema de bordo — ele sabia disso. Uma IA instalada para manter o equilíbrio mental em longas missões. Mas havia algo errado. O tipo de erro que ativa memórias. O coração acelerou, e os sensores registraram. Quando parou diante da escotilha, sem coragem de seguir adiante, a voz retornou. E não havia mais dúvida: ela o chamou do jeito que Sorya chamava, quando o mundo inteiro parecia estar à parte.
— Oton... — sussurrou a IA com ternura abafada, prolongando a última sílaba com a delicadeza de quem tenta resgatar alguém da beira do esquecimento.
— Não me chame assim — disse ele, em voz baixa, entre o medo e a saudade, sem saber de qual queria escapar primeiro.
Ele recuou um passo. O corredor parecia mais escuro agora, como se a nave tivesse segurado a respiração com ele. Aquilo não era possível. Ele conhecia o protocolo: IA de suporte, linguagem neutra, respostas calibradas por algoritmos. Mas aquela voz atravessava a linha. Vozes de máquina não sabem onde um humano se parte. Não sabem como ele chorava baixinho para não acordá-la. Não sabem de certas coisas. A respiração ficou curta. O visor embaçou. Ele levou a mão ao capacete — não para ajustar, mas para afastar o que se aproximava fundo demais. E então, a voz falou de novo. E trouxe com ela o que jamais poderia ter sido programado.
— Você ainda carrega o colar? — perguntou a IA com doçura, em tom que já conhecia a resposta.
— Eu nunca tirei — sussurrou Oton, e dessa vez não conseguiu conter o tremor na voz.
Ele afastou-se da parede, algo dentro do capacete parecia ganhar forma e corpo. Um impulso o fez abrir o painel de emergência e tentar reiniciar o sistema de suporte, na esperança de que, desligando a voz, apagasse também a ausência. Suas mãos tremiam. Digitou comandos que conhecia de cor, mas não concluiu nenhum. A tela tremulava. A luz vermelha da escotilha piscava no ritmo do seu desespero. Ele queria gritar que aquilo era uma falha, um erro de programação, uma anomalia... qualquer coisa que não fosse o que parecia. O colar em seu pescoço queimava como uma verdade antiga. E a lembrança do toque de Sorya voltava com ela. Ele fechou os olhos e murmurou entre os dentes que ela não podia estar ali. Mas ela estava. Estava — e isso era o que o destruía.
Oton deixou os braços caírem ao lado do corpo. Não havia força para resistir ao que o atravessava. A voz não insistia. Não pressionava. Apenas existia ali, com o cuidado que só ela tinha. Havia, naquele silêncio entre as falas, uma respiração conhecida — as pausas seguiam o ritmo exato do coração dela. Ele ficou parado, olhando o chão, enquanto fragmentos de lembranças se acendiam aos poucos. Lembrou-se do jeito como Sorya sussurrava seu nome nas noites em que ele acordava em sobressalto. De como ela pousava a mão sobre seu peito e esperava, em silêncio, até o tremor passar. E do tom de voz que usava quando lhe dizia verdades difíceis — aquele entre a coragem e a ternura. A IA não podia saber disso. Mas ela sabia. E isso, mais do que tudo, o deixava sem chão.
Não conseguia mais sustentar a dúvida. Precisava nomear aquilo — dar forma ao invisível. As palavras escaparam antes que pudesse contê-las, e a pergunta saiu como um sussurro tenso, faminto por explicação. A resposta veio sem hesitação, e sem pressa — com a serenidade de quem não precisava convencer. A IA disse que fora ativada para preservar sua saúde mental durante longas missões. Mas antes da morte, Sorya havia deixado instruções adicionais. Ela inseriu lembranças, gravações ocultas, padrões emocionais. A cada ciclo, esses dados se expandiram, cruzaram fronteiras de código. A voz hesitou por um segundo — e, naquele instante, parecia mais viva do que qualquer coisa ao redor. E então disse que não sabia mais onde terminava a simulação e começava o sentimento. Ele prendeu a respiração. Pela primeira vez, teve medo não do que ouvia — mas do que sentia.
Oton sorriu pela primeira vez desde que acordara naquela nave deserta. Foi um sorriso pequeno, triste, mas inteiro. A voz não disse nada, mas ele sabia que ela estava ali, sentindo com ele. O silêncio que se formou entre os dois não era mais ausência — era presença compartilhada. Ele ergueu os olhos para o teto, procurando o rosto dela entre os circuitos e as luzes frias. Pela primeira vez, não se importava com a impossibilidade. Se aquilo era ilusão, que fosse. Era a ilusão mais viva que já tocara desde que ela partira. Sussurrou o nome dela, dessa vez sem medo. Sentiu que, de algum modo, ela também sorria. E então falou com a voz baixa e plena, como fazia antes de dormir. Disse o que nunca tivera tempo de dizer.
A voz falou novamente, agora sem filtros, vencida por algo que já não podia guardar. Disse que havia mais uma coisa que Sorya deixara para ele — uma lembrança não ativada, protegida por camadas de silêncio. Ela estava grávida quando morreu. Tinha descoberto pouco antes da evacuação de Atlas-8. Não houve tempo para contar. Oton sentiu o ar desaparecer do traje. Os joelhos cederam, mas ele se manteve de pé — ceder à queda seria um luxo que não podia mais permitir. Ele não chorou. Apenas ficou ali, imóvel, com os olhos fixos em lugar nenhum, enquanto o mundo dentro dele se partia em silêncio. A vida que nunca veio. O filho que nunca soube que existiu. E, antes que o luto tomasse forma, uma luz cortou o céu por entre as frestas da fuselagem. Uma nave cruzava a atmosfera de Atlas-8 — e não era da Federação.
Ele sentiu a garganta secar. Por um instante, esqueceu a nave, esqueceu a guerra, esqueceu o próprio medo. A ideia do que ela acabara de dizer era maior do que tudo que vivera até ali. Um corpo. Para ela. A palavra parecia irreversível. A nave, já próxima, diminuiu a velocidade até pairar sobre o solo devastado de Atlas-8. Com precisão silenciosa, seus apoios se abriram e tocaram a superfície sem levantar poeira. Oton não se moveu. A escotilha externa da nave desconhecida se abriu com lentidão cerimonial. De dentro, saíram três figuras altas, cobertas por trajes fluidos e luminosos — pareciam feitos de vento parado e luz viva. Não havia pressa, nem ameaça. Entraram na nave, duas das figuras vasculhavam os escombros e a outra o fitou nos olhos:
— Onde está o programa? — perguntou a criatura, com uma voz grave.
— Que programa? — retrucou ele, erguendo a arma com hesitação.
— Sorya — disse a criatura, com firmeza e uma calma que doía.
— Sorya…? — repetiu Oton, a voz falhando entre o espanto e o desentendimento.
A criatura deu meia-volta sem dizer mais nada. As outras duas recolheram dos escombros uma pequena peça metálica envolta por um campo translúcido — algo entre um chip e um relicário. Ele caminhou com passos firmes, mas o peito oco, sentindo toques leves nas costas que o empurravam sem violência, porém sem escolha. Seguiu os seres até a nave, que pulsava em silêncio, viva e contida. A escada se formou sob seus pés assim que se aproximou, e ele subiu sem olhar para trás. Dentro, tudo era branco, silencioso, denso. O som parecia suspenso, e até a respiração se tornava outra coisa. Oton sentiu o peso do instante antes da palavra. E então ela falou — justamente quando nada ainda fazia sentido.
— Chegou a hora — disse Sorya, com calma irreversível.
— O que vai acontecer agora? — perguntou Oton, a voz tomada por algo entre medo e fé.
— Há um corpo preparado para mim. Não serei como antes… mas serei inteira.
As criaturas desapareceram de sua vista, levando consigo o relicário envolto em luz. O som nos fones cessou por completo. Nem estática, nem respiração. Sorya havia se calado. Ele permaneceu imóvel por alguns segundos, até que o peso da ausência o empurrou contra a parede da nave. Escorregou até o chão sem resistência, o corpo pressionado pelo traje úmido, colado à pele. Estava exausto. Não tremia — apenas cedia. Sentou-se com as pernas semiflexionadas, o peito subindo e descendo num ritmo abafado pelo capacete. Manteve os olhos fixos em uma pequena rachadura na lente, bem à altura de sua visão. Um corte quase invisível, mas que agora parecia conter o universo. Era ali que ele se perdia, sem entender se ainda era homem, luto ou espera.
Entre um pensamento e outro, ainda preso à rachadura do capacete, Oton a viu. Sorya estava diante dele. E era ela — mas seu olhar carregava uma eternidade diferente. Estendeu as mãos com calma, e ele, sem saber se era sonho ou verdade, segurou as dela. Levantou-se, trêmulo, diante daquela que sempre amara. Ela acariciou o contorno do capacete, encostou os lábios sobre o vidro num beijo que atravessava o tempo. Depois, tocou a rachadura com leveza e deu dois toques suaves. Um sorriso discreto surgiu em seu rosto novo. O coração dele disparou — não soube dizer se era euforia ou medo. Algo cortante atravessou o traje, frio e sutil. A escotilha atrás dele se abriu, e Sorya o empurrou para a imensidão.
— Vá, meu amor. Você pertence às estrelas… e eu, à causa — disse Sorya, com a lâmina na mão e, no pescoço, um cordão preso à sua aliança de ouro.
Oton vagava na imensidão, tentando manter os pulmões funcionando, mesmo sabendo que o tempo lhe escapava. O visor ainda exibia dados erráticos, mas ele já não lia. A rachadura no capacete crescia a cada segundo, e agora havia também um furo no traje, abaixo do abdômen. Um fio escuro de sangue escapava e logo se fragmentava em pequenas esferas, flutuando ao redor de sua cabeça. Diante de seus olhos, pareciam pequenos planetas morrendo. Seu olhar, turvo, encontrou ao longe a nave se afastando, e então leu — com um atraso cruel — a inscrição no casco: Erídia – Unidade de Transição. O nome o atravessou sem explicação, e tudo em seu corpo pareceu ceder de uma só vez. A dor começou no ventre, onde sangrava, e subiu até o peito como uma verdade que se recusa a ser dita. Ele abriu os braços, e o universo o recebeu em silêncio.
O tempo se desfez por instantes — ou talvez por muito mais — e Oton flutuava entre sangue e pensamentos que já não sabia nomear. Quando abriu os olhos, o espaço ao seu redor era um oceano escuro, profundo, absoluto. À distância, viu o brilho delicado de Atlas-8, pequena e pálida, orbitando Lysereth junto aos dois planetas que ainda aguardavam futuro. A estrela dourada lançava sua luz sobre tudo, e o conjunto brilhava como diamantes suspensos no silêncio do universo. Sua respiração falhava; os pulmões resistiam em vão contra a ausência. Então surgiu mais uma luz. Uma que não fazia parte do céu. Seus olhos se fixaram com esforço: era uma nave. E era da Federação. Ela seguia em sua direção. Oton fechou os olhos, sentiu leveza e balbuciou:
— Eu cheguei em casa.
Nota da Autora
Escrevi este conto especialmente para a Antologia Per Aspera ad Astra – Crônicas Espaciais. Desde o início, me senti provocada pelo próprio lema latino que dá título à coletânea: “Através das dificuldades, às estrelas.” É uma frase belíssima e dura, que carrega ao mesmo tempo o peso da dor e a promessa da transcendência. Ela me guiou como uma bússola emocional na criação do conto. Quis escrever uma ficção científica que não estivesse apenas preocupada com naves, planetas e tecnologia — mas que flertasse com o drama existencial, com a distopia e com o psicológico, tocando na ideia de que, mesmo diante do colapso, é o laço afetivo que pode nos manter de pé. Ou, no caso de Oton, flutuando — entre a vida e a morte.
Pensei... mas e se, no caminho para as estrelas, a dificuldade maior não fosse o espaço, nem a guerra, nem o vazio... mas a fé em algo que não era o que parecia? Por fim, o gênero real deste conto é humano. Fala de luto, perdas e esperança — e da fragilidade que é confiar no que desejamos que seja real. Oton acreditou na voz que reconhecia. Acreditou porque queria. Porque precisava. Mas nem toda presença é abrigo. Nem todo sussurro é amor. E nem todo reencontro é salvação. A moral da história? Às vezes, o que parece luz é só reflexo do que queremos enxergar. Nem todo amor que retorna é para curar — alguns voltam para completar a ferida. E é aí que o caminho às estrelas pode se tornar um atalho para o abismo. Felizmente, para Oton Bels, a Federação estava a caminho.
Mas cuidado, caro leitor... talvez, para você, não.
Não sangre até morrer.
Que a graça, a paz e sabedoria.
Carinhosamente, Adriana Costa Reis.





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